Dubladores
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Recentemente, escrevi e postei neste blog o texto “O Manto de Penélope”, no qual discuto como uma pessoa pode criar estratégias para evitar sair do seu mundo confortável e arriscar novas possibilidades de satisfação, especificamente no campo das relações afetivas. Retorno ao assunto de Penélope devido a uma crítica, altamente construtiva, elaborada por uma pessoa de meu convívio íntimo. A crítica não foi postada no blog como comentário ao texto, mas me propus a escrever essas considerações com intuito de revisar o texto anterior. Muito obrigado, é com tais reflexões que tenho a oportunidade de aprimorar minha escrita, minha argumentação e minhas convicções teórico-metodológicas.
Inicialmente, foi-me pontuado que Homero, enquanto um autor, ainda é assunto controverso; não há meio de comprovar se ele foi uma pessoa real ou se vários autores escreveram trechos diferentes da Odisséia ou se Homero foi apenas o compilador dos vários poemas a ele atribuídos. Portanto, no texto anteriormente escrito por mim, a afirmação que Homero criou a personagem Penélope deve ser entendida com essa ressalva, embora para a análise tecida esse dado não seja da mais alta relevância.
A outra pontuação diz respeito à certeza que teve Penélope do retorno de Odisseu ao lar. Para o autor da crítica, o fato de a personagem afastar seus pretendentes se trata de ação pautada na certeza da volta de seu esposo e, portanto, a personagem é sim o símbolo da resiliência e da espera paciente para viver um grande amor e não pode ser analisada como representação de auto-sabotagem, como argumentado no meu texto. Vamos então aos dados constantes na Odisséia.
O herói Odisseu saiu em combate, tendo ficado ausente 20 anos, dez durante a Guerra de Tróia e dez em retorno ao lar. O herói foi aprisionado por sete desses dez últimos anos pela ninfa Calipso e bravamente lutou para retornar a Ítaca, sua terra. Durante o retorno, seu filho Telêmaco, com ajuda da deusa Atena, obtém notícias do pai e o encontra, jurando segredo até o momento apropriado. Odisseu se apresenta a Penélope como um velho mendigo e, após matar os pretendentes da esposa, ele se revela. Ela somente acredita que é realmente seu marido, tido como morto até então, quando ele descreve a ela a cama que ele fez e a presenteou no casamento. Durante esse tempo, antes do reencontro com o esposo, Penélope ficou na incerteza da morte de Odisseu; e durante esse período é que ela utilizou estratégias para afastar seus pretendentes, como a confecção da mortalha de Laerte, o pai de Odisseu.
Na crítica ao meu texto anterior, foi alegado que Penélope e sua estratégia para afastar outros homens não representam símbolo de auto-sabotagem ou de apego extremo ao seu amor; entretanto, ao se analisar a história (que confesso ter sido parcamente estudada por meio eletrônico, ou seja, em www.wikipedia.org), observa-se que a personagem afastou deliberadamente seus pretendentes enquanto ainda havia a incerteza da morte de Odisseu. O que a motivou então?
Em Ciência do Comportamento, é feita a distinção de duas modalidades de ações: as governadas por contingências e as governadas por regras.
Os comportamentos governados por contingências são aqueles que dependem de variáveis do ambiente do organismo: eventos antecedentes sinalizam a possibilidade de ocorrência do comportamento enquanto os eventos consequentes alteram a probabilidade de ocorrência futura do comportamento. Quando uma pessoa é capaz de observar e descrever essa relação de funções, diz-se que ela aprendeu uma regra. Ou seja, passa a fazer parte do seu repertório verbal a descrição das contingências a que seus comportamentos estão submetidos.
O comportamento governado por regras é aquele que é controlado por essas descrições de contingências. Quando uma pessoa leva um choque ao colocar o dedo na tomada, por exemplo, ela acaba tendo seu comportamento futuro governado pela regra “se eu colocar o dedo na tomada, então eu levarei um choque”, dispensando a necessidade de passar pela mesma situação outras vezes; diz o senso comum que essa pessoa “aprendeu que colocar o dedo na tomada dá choque”. Algumas regras são aprendidas de outra maneira: não precisamos ser atropelados para aprender que atravessar a rodovia pode resultar em morte. Esse processo de aprendizado é mais complexo e requer aprofundamento, talvez em outro texto.
Ao correlacionar esse suporte teórico com a história de Penélope, pode-se traçar a seguinte análise: Penélope rejeitou seus pretendentes sem ter total certeza da morte de seu esposo. Não é possível saber o que pode ocorrer em uma guerra; aliás, é muito provável que pessoas que se envolvem em guerras acabem porventura morrendo. Ela teve seus comportamentos de “rejeitar pretendentes” governados, possivelmente, por uma regra, sem ter passado pela experiência de ver bem sucedidas suas ações de espera paciente e resiliência. Ela “acreditou”, “desejou”, “esperou” o retorno de Odisseu, mesmo sem a absoluta comprovação de sua volta.
E é justamente o que ocorre com muitas pessoas na nossa vida-fora-da-epopéia: rejeitamos pessoas novas e nos prendemos a fiapos de esperança de retorno ou de resolução dos conflitos com o(a) antigo(a) parceiro(a).
Quando recebi a crítica, foi-me feita a seguinte pergunta: “você acha pertinente utilizar esse mito para descrever o tipo de comportamento que você deseja analisar”? A resposta é sim, pois tal qual a Penélope mítica, as(as) Penélopes da vida real não têm nada senão a esperança de um dia reaver seus(suas) Odisseus, além da confortável situação de “amar” uma pessoa já conhecida, em vez de se arriscar em situações novas. Isso não retira da personagem o caráter de símbolo de fidelidade conjugal, apenas explica suas motivações. Que, aliás, parecem ser as mesmas das atuais personagens das modernas Odisséias: esperam situações que podem ou não se concretizar, têm uma certeza que nem sempre é provável de ser real; mas continuam a rejeitar pretendentes, pacientes e esperançosas do regresso do esposo ao lar.